Futebol entre a vida e a morte
“Alguém me disse que o futebol é um tema de vida e morte para mim. Eu respondi: ouça, é mais importante que isso.”
20 de maio de 1981. Bill Shankly, que fora técnico do Liverpool durante 16 anos, já aposentado, concede uma entrevista à rede de televisão local. Papo vai, papo vem, o técnico solta a frase que o deixaria marcado para sempre:
“Alguém me disse que o futebol é um tema de vida e morte para mim. Eu disse: ouça, é mais importante que isso.”1
A frase traz, naturalmente, um efeito cômico. O que seria mais importante do que o viver e morrer? Paulo de Tarso, em sua carta à comunidade de Corinto, diz que sua corrida não é como a dos atletas, que buscam uma coroa de louros, mas de outra ordem, porque ele busca uma coroa que não perece.
Para Mark Jones, em publicação no jornal The Mirror, é comum que se entenda essa frase como a afirmação de uma nociva trivialidade. Tendo publicado o artigo em 2020, durante a pandemia, ele se refere a vários artigos de opinião que contrastam essa frase de Bill com o drama que vivemos naquele período.
Jones, no entanto, afirma que a frase não deve ser entendida de um modo tão literal. Recorrendo ao seu biógrafo John Keith, o colunista afirma que se trata de uma fina ironia. “Ele sempre sabia como entregar uma frase potencialmente escandalosa ou uma linha cômica”, diz o biógrafo.
Dentro do contexto da entrevista, a comicidade aparece porque Jones diz que se arrepende de ter ficado tanto tempo longe de sua família para crescer profissionalmente e tornar-se a lenda que foi. Trata-se de uma confissão pessoal, repleta daquele estilo incisivo do humor britânico, e não de uma imposição máxima do futebol sobre todas as coisas.
O poder de uma frase
Por nossas terras brasileiras, é claro que temos a nossa própria versão da frase de Shankly. Em 2011, o grande jogador Ronaldo Nazário disse:
“Sem estádio não faz Copa do Mundo, meu amigo.”
Anos mais tarde, ele se defendeu, dizendo que essa frase também foi retirada de contexto. Ele tem um ponto bastante defensável: afinal, em 2011 não tínhamos o mesmo contexto político que foi se construindo nos anos seguintes. A tramitação nos bastidores começou a ocorrer por volta de 2002, 2003, e em 2006 houve a confirmação do Mundial por aqui. Os desafios e conquistas eram tão diferentes que podemos dizer até que o Brasil era outro.
Acontece que, uma vez proferida, certas frases acabam criando uma história própria, e a frase de Ronaldo é uma dessas, que criou uma história própria, e concentrou para si uma grande carga emocional e também de reflexões sobre o modo com que nós enxergamos o nosso próprio país.

Futebol como atividade humana
Ronaldo bem sabe que nem sempre as faltas de um jogo são cometidas intencionalmente, mas que elas precisam ser marcadas. Com frases, acontece a mesma coisa. A sua foi devidamente punida ao longo dos anos seguintes. Shankly, por outro lado, foi “absolvido” de sua frase pela sua morte meses após proferi-la.
Por mais que, como Jones nos explicou, ela possa ser interpretada como uma auto-ironia, eu gostaria de refletir sobre como o futebol poderia ser, de algum modo, mais importante que a vida e a morte. E aqui deixo frisado o de algum modo porque não creio que o futebol será capaz de ultrapassar a questão de vida ou morte, mas poderá chegar bem perto dela.
Para percorrer esse caminho, precisamos nos limpar um pouco da transformação econômica e midiática que ocorreu em todos os times nas últimas décadas e nos lembrar daquilo que o futebol realmente é em sua nota mais fundamental: um jogo e um esporte. Falando nestes termos, parece-nos ridícula tal afirmação. No entanto, como diz Júlio Garganta, professor da Faculdade do Porto e analista em futebol “nos últimos anos este jogo desportivo tem-se visto mergulhado num emaranhado de negociatas que estão a pôr em perigo a sua identidade”2.
Com a midiatização, argumenta o professor, cria-se “a ideia de que o Futebol gira, quase exclusivamente, em torno de conflitos contratuais, erros de arbitragem, declarações polémicas e suspeições sobre a dopagem”, quando, na verdade, precisa ser compreendido como atividade humana, e como tal, de grande dignidade.
“O Futebol é uma actividade construída pelo Homem e, portanto, um fenómeno cultural, o que quer dizer que pode ser aquilo que dele formos capazes de fazer. Tal significa que a magnitude do protagonismo social deste jogo desportivo justifica que o mesmo se imponha como actividade organizada e humanizante, obedecendo não apenas a necessidades funcionais, mas também a imperativos éticos e morais.” Júlio Garganta.
Rastrear o impacto do futebol na vida e na morte nos exigirá, portanto, compreender que ele ocupa um espaço indispensável e privilegiado da vida humana. E aqui, precisaremos recorrer mais ao gênero desportivo do que propriamente ao futebol. Mas cumpre que hoje este é o esporte mais popular do planeta.
Platão, em sua obra prima “A República”, valoriza muito a formação atlética dos jovens. O ideal grego de perfeição do corpo é tão mais importante quanto mais alto for o seu papel na pólis. Há uma íntima associação entre um ideal de corpo e um ideal de cidadão. Esse corpo carrega a matriz identitária da pólis - e nesse sentido podemos vislumbrar aquilo que Júlio Garganta chama de fenômeno cultural.
Futebol e o Ser
Mas afinal, o que constitui um time de futebol? Manuel Sérgio, filósofo português de grande proeminência no mundo de língua portuguesa, o que caracteriza um time de futebol é a intencionalidade. Mas afinal, o que seria isso? Valendo-se de Lévinas, o filósofo defende que intencionalidade é o ato de emprestar um sentido. A pergunta, portanto, é sobre que sentido se empresta a um time.
Que sentido é esse? Talvez pudéssemos perguntar a uma criança. Ela nos responderia, provavelmente, que o sentido do futebol é o gol. De fato, a tradução de goal é meta, objetivo, finalidade. Compreendemos, portanto, que o futebol tem como goal o gol. É ele quem empresta o sentido a todo o time. Alguns ocuparão posições de maior destaque, outros serão quase esquecidos. Mas há, ainda, aqueles que não entram em campo: toda a equipe de preparação, que faz o seu trabalho com um sentido próprio, mas que está em unidade com esse goal máximo que é a vitória. Não há, em um time, alguém que não tenha o seu papel, que não exerça a sua atividade. Até mesmo o torcedor não ocupa um papel passivo dentro do time: torcidas motivam e desmotivam os jogadores.
Para Manuel Sérgio, esse sentido máximo é a transcendência: tomar consciência especificamente de que não se é objeto na História, mas construtor dela. O futebol é “manifestação da alma coletiva de um povo”3. Trata-se, portanto, de desenvolver a própria identidade pessoal, a contribuição individual, em benefício da comunidade, pela grandeza da pólis - sem sujeitar-se como objeto dentro de sua própria História, mas como criador de sentido e narrativa. Falamos, então, em ser time, antes de tudo. “Ação sem sentido não passa de mera agitação ou capricho”4.
É preciso resgatar, neste caso, o filósofo francês Maurice Blondel. Este filósofo não concebe o ser humano como alguém parado, taciturno. Para ele, a ação é o agir do ser. O ser humano, nesta concepção, sente o drama do mundo, do transcendente, e sua resposta é a de inquietação e de movimento. Essa ação se faz como exigência do amor. Falamos, portanto, na construção de um espaço de liberdade em que se possa agir e tomar parte nesta resposta ao amor que impele.
Em tempo: O futebol está entre a vida e a morte, à medida que nos confere sentido e transcendência.
"Somebody said that football's a matter of life and death to you, I said 'listen, it's more important than that'."
Sérgio, Manuel. Filosofia do futebol. Estoril (Portugal): Prime Books, 2011, p. 64.
Idem, p. 70.